quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Qual o alvo ideal para o tratamento da hipertensão? Polémica sobre o estudo SPRINT

Título: The SPRINT Research Group. A randomized trial of intensive versus standard blood-pressure control

Introdução: Os alvos de tensão arterial sistólica (TAS) no tratamento da hipertensão arterial (HTA) que conferem uma maior redução de morbimortalidade cardiovascular (CV) permanecem incertos.

Objectivo: Comparar o impacto do tratamento intensivo da HTA (alvo de TAS < 120 mmHg) com tratamento standard (<140 mmHg) na morbimortalidade cardiovascular de pessoas acima dos 50 anos, com risco cardiovascular aumentado mas sem diabetes.

Métodos: Trata-se de um estudo aleatorizado, controlado, open-label que decorreu em 102 clínicas nos EUA e Porto Rico. Incluíram-se pessoas que cumpriam os três seguintes parâmetros: 50 anos ou mais, TAS 130-180 mmHg, risco cardiovascular alto. Este último foi definido por um ou mais dos seguintes critérios: doença cardiovascular clínica ou subclínica, doença renal crónica (DRC) com taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) 20-60 ml/min/1,73m2, score de Framingham ≥ 15%, idade ≥ 75 anos. Foram excluídas pessoas com: diabetes, acidente vascular cerebral (AVC) prévio, doença renal poliquística.
A aleatorização foi estratificada de acordo com o local, estando os participantes e os intervenientes informados dos grupos atribuídos.
O outcome primário era composto por enfarte agudo do miocárdio, outros síndromes coronários, AVC, insuficiência cardíaca ou morte de causa cardiovascular. Os outcomes secundários, incluiam também a mortalidade global. Foram considerados também outcomes de segurança, nomeadamente eventos adversos e outcomes renais. A classificação dos eventos foi realizada por um comité de adjudicação que estava ocultado do grupo dos participantes. Foi realizada análise estatística por intenção de tratar de todos os outcomes.

Resultados: Foram recrutados 9361 participantes, que foram aleatorizados para tratamento intensivo ou standard. Não havia diferenças estatisticamente significativas nas características basais dos dois grupos. Ao fim de um ano, o grupo intensivo tinha uma TAS média de 121,4 mmHg e o grupo standard 136,2 mmHg. A diferença de TAS entre os dois grupos foi em média 13,1 mmHg, sendo que o grupo intensivo tinha 2,8 fármacos e o grupo standard 1,8.
Após cerca de 3,26 anos de seguimento, o estudo foi interrompido por se verificar uma taxa inferior do outcome primário no grupo de tratamento intensivo (hazard ratio, 0,75; intervalo de confiança [IC] 95% - 0,64 a 0,89; redução de risco relativo [RRR] de 25%; número necessário de tratar [NNT] de 61). A mortalidade global também foi significativamente mais baixa no grupo do tratamento intensivo (hazard ratio, 0,73; IC 95% - 0,60 a 0,90, RRR de 27%; NNT de 90).
As taxas de eventos adversos de hipotensão, síncope, alterações hidroelectrolíticas e lesão renal aguda foram mais elevadas no grupo intensivo, com excepção da taxa de quedas.

Conclusões: Entre doentes com risco CV aumentado mas sem diabetes, um alvo de TAS < 120 mmHg, comparado com um alvo de TAS < 140 mmHg, resultou em menores taxas de eventos CV fatais e não fatais e morte por qualquer causa. Contudo, as taxas de alguns eventos adversos foram significativamente superiores no grupo do tratamento intensivo.

Análise: De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a HTA é o fator de risco mais importante para morte prematura1. Em Portugal, a sua prevalência é de 26.9% (dados de 2013)2. No entanto, os alvos para controlo da TA não são consensuais. Uma revisão sistemática da Cochrane de 20093 que analisou 7 ensaios clínicos incluindo 22089 participantes não encontrou evidência que uma redução do alvo da TA para valores ≤ 135/85 mmHg diminuísse a morbimortalidade. A norma de orientação de HTA do National Institute for Health and Care Excellence (NICE)4 de 2011, baseada em 8 ensaios clínicos aleatorizados, recomenda um alvo tensional de 140/80 mmHg para indivíduos com menos de 80 anos, mas realça que a evidência que avalia especificamente o alvo ideal de tratamento é insuficiente e não permite certezas quanto ao mesmo. Em relação aos doentes com Diabetes Mellitus, o estudo ACCORD5 mostrou que um alvo de TAS < 120 mmHg não se traduziu em benefício cardiovascular.

O estudo SPRINT vem desafiar a evidência prévia e levantar questões pertinentes sobre o alvo terapêutico ideal da HTA. O resultado principal foi a diminuição de eventos cardiovasculares fatais e não-fatais, apresentado sob a forma de uma RRR de 25%. Contudo, olhando para a redução do risco absoluto de mortalidade global, que traduz de forma mais realista os ganhos em saúde, verificamos que em relação ao outcome primário a redução foi de 0,54% e que a taxa de mortalidade global diminuiu apenas cerca de 0,37% por ano. Isto significa que para salvar uma vida a cada 3 anos precisaríamos de tratar intensivamente 90 pessoas (NNT 90).

Dos restantes outcomes, importa assinalar que se verificaram mais casos de lesão renal aguda reversível no grupo intensivo, bem como maior redução da TGFe nos doentes sem DRC prévia. No entanto, os outcomes renais não puderam ser avaliados adequadamente, uma vez que seriam calculados apenas no final do follow-up planeado de 5 anos.

Em relação aos efeitos adversos, a síncope e hipotensão foram significativamente mais frequentes no grupo intensivo (3,5% vs. 2,4%, e 3,4% vs. 2,0%, respetivamente), mas a taxa de quedas com lesões subsequentes manteve-se semelhante nos dois grupos.

Relativamente aos pontos fortes do estudo, a amostra de grandes dimensões, com boa representação de grupos frequentemente sub-representados em ensaios clínicos, como mulheres, idosos e minorias étnicas. A análise por intenção de tratar garante uma perspectiva mais real dos outcomes, pois analisa os doentes no grupo em que foram inicialmente alocados (independentemente do seu cumprimento terapêutico). Apesar da natureza open-label do estudo, a equipa de estatística e o comité de adjudicação de outcomes estavam cegos para a alocação.

Um dos aspectos a salientar é o da população incluída no estudo não corresponder à maioria dos doentes que observamos nos cuidados de saúde primários (CSP) - a amostra incluía apenas doentes com 50 anos ou mais, com alto risco CV, com ou sem doença arterial coronária prévia, tendo sido excluídos doentes com diabetes, AVC prévio, idosos institucionalizados e doentes com antecedentes de má adesão terapêutica.

O valor médio da PAS nos dois grupos foi 139,7 mmHg, pois foram incluídos doentes pré-hipertensos e excluídos hipertensos polimedicados com mau controlo tensional. Além disso, os valores de TA foram medidos em contexto de consulta, o que pode condicionar uma avaliação menos fidedigna da TA em comparação com os valores no domicílio6.

Uma das principais limitações do estudo é o formato open-label (os médicos e os doentes sabiam da sua alocação). Isto pode influenciar a intensidade da abordagem terapêutica (não exclusivamente farmacológica) por parte dos médicos, condicionando um potencial viés. Aliás, o grupo intensivo teve um protocolo de seguimento mais apertado: bastava uma medição da TA elevada para agendar uma reavaliação em 1 mês, em vez dos 3 meses programados; enquanto que no grupo de controlo, só após 2 medições elevadas em consultas diferentes é que era programada uma reavaliação mensal7. Verificamos ainda que mais de metade das mortes “em excesso” no grupo controlo foram devidas a causas não-cardiovasculares8, sugerindo um efeito protector que vai além da redução da TA - será que se relaciona com esta vigilância mais frequente do grupo de tratamento intensivo?

Em conclusão ao comentário, este estudo não se aplica à maioria dos doentes do nosso contexto de CSP, e não deve levar à mudança do alvo tensional em todos os hipertensos. Foram incluídos apenas doentes com alto risco cardiovascular e sem diabetes ou AVC prévio, sendo que nos restantes não há qualquer evidência para alterar o tratamento. Além disso, mesmo nesta população seleccionada, o benefício do controlo intensivo da TA na mortalidade parece reduzido e não existe evidência que ultrapasse os potenciais riscos e custos do tratamento. A decisão deve ser, em última instância, partilhada entre médico e doente, uma vez explicada a evidência disponível, sem esquecer o impacto dos estílos de vida saudáveis no controlo da HTA.

Por Ana Rita Domingues, Ângela Pacheco, Paulo Faria de Sousa (USF AlphaMouro) e Catarina Viegas Dias (USF Dafundo)