Introdução: O sopro cardíaco
é um achado clínico afetando cerca de 65% a 80% crianças em idade escolar. A
maioria dos sopros são fisiológicos mas a distinção entre normal e patológico
nem sempre é fácil, levando a referenciações a Cardiologia desnecessárias,
aumentado a ansiedade parental, consumo de tempo e de investigações.
Objetivo: Verificar o
desaparecimento do sopro cardíaco em auscultação de crianças de dois ou mais
anos em pé para excluir um sopro patológico.
Metodologia: Estudo prospetivo
entre Janeiro de 2014 e Janeiro 2015 com uma amostra de 194 crianças entre 2 e
18 anos referenciadas a 6 cardiologistas pediátricos em dois hospitais
franceses para avaliar o sopro cardíaco. Excluíram-se crianças com perturbações
genéticas ou sistémicas, história familiar de doença cardíaca, que não
conseguiam ficar de pé pelo menos 1 minuto e que já teriam sido vistas por cardiologia
ou feito um ecocardiograma. Colheu-se a história pessoal da criança, sintomas cardiopulmonares
e características da auscultação cardíaca primeiro em posição supina e depois de
pelo menos 1 minuto em ortostatismo. Fez-se a todos um ecocardiograma para
avaliar a presença ou ausência de alterações que pudessem explicar o sopro. As
regurgitações valvulares e o foramen ovale patente foram considerados
fisiológicos. Os dados descritivos foram apresentados como médias ± desvios
padrão e os dados de desempenho diagnóstico foram apresentados como valores com
intervalos de confiança de 95%. O significado estatístico foi definido como P<0,05.
Resultados: Das 194
crianças referenciadas por sopro, 30 (15%) apresentaram uma alteração cardíaca
demonstrada por ecocardiograma. A presença de sopro patológico foi associada à persistência
do mesmo em ortostatismo, à ausência da diminuição da sua intensidade, à
localização no bordo para-esternal esquerdo ou no ápex e à presença de irradiação.
Em 100 (52%) das 194 crianças, o sopro deixou de ser audível na passagem a
ortostatismo. Dentro deste grupo apenas 2 apresentavam um ecocardiograma
alterado. Apesar de uma sensibilidade de 60% (IC 95%, 52%-67%), observou-se o
desaparecimento do sopro cardíaco com a transição da posição supina para
ortostatismo, predizendo ausência de doença cardíaca com um valor preditivo
positivo (VPP) de 98% (IC 95%, 93%-100) e uma especificidade de 93% (IC 95%,
78%-99%).
Discussão: O exame físico deve
continuar a ser a primeira linha de diagnóstico. Neste estudo, 85% das crianças
referenciadas a cardiologia não tinha doença cardíaca, demonstrando não haver
um critério clinico que assegure os profissionais de saúde da ausência de
patologia em crianças com sopro. Com um VPP de 98%, a ausência de doença
cardíaca foi associada ao desaparecimento do sopro cardíaco com a transição da
posição supina para ortostatismo. Os autores afirmam que a auscultação cardíaca
em ortostatismo poderá reduzir em mais de 50% o número de referenciações a
cardiologia, poupando recursos em saúde. Consideram este ser um teste clínico
valioso para excluir patologia cardíaca e evitar referenciação a cardiologia. Como
limitações ao estudo referem a subjetividade da auscultação e o facto de não
ter sido avaliada a sua reprodutibilidade entre os médicos participantes, nem
entre estes e os médicos de cuidados de saúde primários. Concluem serem
necessários mais estudos para confirmar o valor desta ferramenta.
Análise: A auscultação cardíaca é parte integrante
do exame objectivo efectuado na consulta de vigilância da população pediátrica.
Tal facto, coloca o “achado” sopro, como uma alteração possivelmente frequente
neste contexto. Os Cuidados primários têm um papel importante na gestão dos
recursos de saúde: quanto melhor soubermos o que fornecer e a quem, conscientes
das limitações desses recursos, melhores seremos a geri-los de forma eficaz e
equitativa.
Considerámos a temática e o resultado deste estudo
- o desaparecimento do sopro cardíaco nas crianças auscultadas em pé se tratar
de um teste especifico (especificidade de 93%) para excluir a doença cardíaca -
como pertinente e como um ponto forte do estudo, uma vez que se adequa à
realidade, às problemáticas e à população abrangida na prática dos cuidados
primários. Outro ponto forte do estudo, consequente do primeiro, é que este
estudo poderá contribuir para o aperfeiçoamento do papel “gestor de recursos”
dos cuidados primários, ao evitar exames complementares de diagnóstico
dispensáveis e referenciações aos cuidados secundários mais adequados.
No entanto, como limitações e os próprios autores também as referem, nota-se
a existência de uma amostra pequena, a própria auscultação ser subjectiva e
apenas cardiologistas pediátricos terem participado no estudo. Notamos ainda que
por não se tratar de um estudo que abranja população portuguesa, ficamos sem
saber se o contexto em estudo é representativo da nossa realidade, uma vez que
não nos fornece a prevalência de patologia cardíaca da população pediátrica
portuguesa, e assim um valor pré-teste ao teste em estudo. A conclusão do
estudo é baseada no resultado de um alto valor preditivo positivo (98%) do
teste em questão, no entanto este depende do seu valor pré-teste (variável
entre populações).
Achamos que poderá ser assim comprometida a transposição para a medicina
geral e familiar, uma vez que não houve avaliação entre os médicos de família e
na população portuguesa.
Seria bom existirem estudos mais alargados, no âmbito dos cuidados de saúde
primários portugueses para validarem o uso da auscultação cardíaca em pé como
forma de exclusão do sopro patológico.
Por Ângela Pacheco, Irene Moura, Maria da Paz Brito (USF AlphaMouro)