quinta-feira, 8 de março de 2018

Auscultação em pé: Um método básico e de confiança para despiste do sopro cardíaco patológico em crianças

Título: Auscultation While Standing: A Basic and Reliable Method to Rule Out a Pathologic Heart Murmur in Children (link)

Introdução: O sopro cardíaco é um achado clínico afetando cerca de 65% a 80% crianças em idade escolar. A maioria dos sopros são fisiológicos mas a distinção entre normal e patológico nem sempre é fácil, levando a referenciações a Cardiologia desnecessárias, aumentado a ansiedade parental, consumo de tempo e de investigações.

Objetivo: Verificar o desaparecimento do sopro cardíaco em auscultação de crianças de dois ou mais anos em pé para excluir um sopro patológico.

Metodologia: Estudo prospetivo entre Janeiro de 2014 e Janeiro 2015 com uma amostra de 194 crianças entre 2 e 18 anos referenciadas a 6 cardiologistas pediátricos em dois hospitais franceses para avaliar o sopro cardíaco. Excluíram-se crianças com perturbações genéticas ou sistémicas, história familiar de doença cardíaca, que não conseguiam ficar de pé pelo menos 1 minuto e que já teriam sido vistas por cardiologia ou feito um ecocardiograma. Colheu-se a história pessoal da criança, sintomas cardiopulmonares e características da auscultação cardíaca primeiro em posição supina e depois de pelo menos 1 minuto em ortostatismo. Fez-se a todos um ecocardiograma para avaliar a presença ou ausência de alterações que pudessem explicar o sopro. As regurgitações valvulares e o foramen ovale patente foram considerados fisiológicos. Os dados descritivos foram apresentados como médias ± desvios padrão e os dados de desempenho diagnóstico foram apresentados como valores com intervalos de confiança de 95%. O significado estatístico foi definido como P<0,05.

Resultados: Das 194 crianças referenciadas por sopro, 30 (15%) apresentaram uma alteração cardíaca demonstrada por ecocardiograma. A presença de sopro patológico foi associada à persistência do mesmo em ortostatismo, à ausência da diminuição da sua intensidade, à localização no bordo para-esternal esquerdo ou no ápex e à presença de irradiação. Em 100 (52%) das 194 crianças, o sopro deixou de ser audível na passagem a ortostatismo. Dentro deste grupo apenas 2 apresentavam um ecocardiograma alterado. Apesar de uma sensibilidade de 60% (IC 95%, 52%-67%), observou-se o desaparecimento do sopro cardíaco com a transição da posição supina para ortostatismo, predizendo ausência de doença cardíaca com um valor preditivo positivo (VPP) de 98% (IC 95%, 93%-100) e uma especificidade de 93% (IC 95%, 78%-99%).

Discussão: O exame físico deve continuar a ser a primeira linha de diagnóstico. Neste estudo, 85% das crianças referenciadas a cardiologia não tinha doença cardíaca, demonstrando não haver um critério clinico que assegure os profissionais de saúde da ausência de patologia em crianças com sopro. Com um VPP de 98%, a ausência de doença cardíaca foi associada ao desaparecimento do sopro cardíaco com a transição da posição supina para ortostatismo. Os autores afirmam que a auscultação cardíaca em ortostatismo poderá reduzir em mais de 50% o número de referenciações a cardiologia, poupando recursos em saúde. Consideram este ser um teste clínico valioso para excluir patologia cardíaca e evitar referenciação a cardiologia. Como limitações ao estudo referem a subjetividade da auscultação e o facto de não ter sido avaliada a sua reprodutibilidade entre os médicos participantes, nem entre estes e os médicos de cuidados de saúde primários. Concluem serem necessários mais estudos para confirmar o valor desta ferramenta.

Análise:  A auscultação cardíaca é parte integrante do exame objectivo efectuado na consulta de vigilância da população pediátrica. Tal facto, coloca o “achado” sopro, como uma alteração possivelmente frequente neste contexto. Os Cuidados primários têm um papel importante na gestão dos recursos de saúde: quanto melhor soubermos o que fornecer e a quem, conscientes das limitações desses recursos, melhores seremos a geri-los de forma eficaz e equitativa.
Considerámos a temática e o resultado deste estudo - o desaparecimento do sopro cardíaco nas crianças auscultadas em pé se tratar de um teste especifico (especificidade de 93%) para excluir a doença cardíaca - como pertinente e como um ponto forte do estudo, uma vez que se adequa à realidade, às problemáticas e à população abrangida na prática dos cuidados primários. Outro ponto forte do estudo, consequente do primeiro, é que este estudo poderá contribuir para o aperfeiçoamento do papel “gestor de recursos” dos cuidados primários, ao evitar exames complementares de diagnóstico dispensáveis e referenciações aos cuidados secundários mais adequados.
No entanto, como limitações e os próprios autores também as referem, nota-se a existência de uma amostra pequena, a própria auscultação ser subjectiva e apenas cardiologistas pediátricos terem participado no estudo. Notamos ainda que por não se tratar de um estudo que abranja população portuguesa, ficamos sem saber se o contexto em estudo é representativo da nossa realidade, uma vez que não nos fornece a prevalência de patologia cardíaca da população pediátrica portuguesa, e assim um valor pré-teste ao teste em estudo. A conclusão do estudo é baseada no resultado de um alto valor preditivo positivo (98%) do teste em questão, no entanto este depende do seu valor pré-teste (variável entre populações).
Achamos que poderá ser assim comprometida a transposição para a medicina geral e familiar, uma vez que não houve avaliação entre os médicos de família e na população portuguesa.
Seria bom existirem estudos mais alargados, no âmbito dos cuidados de saúde primários portugueses para validarem o uso da auscultação cardíaca em pé como forma de exclusão do sopro patológico.

Por Ângela Pacheco, Irene Moura, Maria da Paz Brito (USF AlphaMouro)

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