domingo, 9 de setembro de 2018

Risco de mortalidade por qualquer causa em doentes diabéticos sob terapêutica com beta-bloqueantes


Título: Risk of All-Cause Mortality in Diabetic Patients Taking b-Blockers (link)

Introdução: Estudos recentes sugerem que os β-bloqueantes podem prevenir ou diminuir os efeitos adversos após um episódio de hipoglicemia grave, contudo estes resultados não significam que o uso destes fármacos seja eficaz em doentes diabéticos. Os efeitos adversos major dos β-bloqueantes incluem risco de ocorrência de hipoglicemia grave (pois mascaram os sintomas precoces) e aumento ponderal, fatores que podem condicionar aumento do risco cardiovascular e morte. Assim, o uso de β-bloqueantes em doentes com diabetes pode estar associado a um risco aumentado de mortalidade.

Objetivo: Analisar a relação entre o uso de β-bloqueantes e a mortalidade por qualquer causa em doentes diabéticos e não diabéticos.

Metodologia: Este é um estudo prospetivo de coorte, com uma amostra selecionada a partir dos registos do US National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) recolhidos entre 1999-2010, e seguida desde a data da participação até 31 de dezembro de 2011.
O NHANES foi conduzido através de entrevistas em casa e avaliações em centros médicos. Foram selecionados 17524 participantes com idades compreendidas entre os 20 e os 79 anos.
A amostra foi dividida em doentes diabéticos e não diabéticos, que por sua vez foram divididos consoante a toma β-bloqueantes (medicados e não medicados). Adicionalmente foram também analisados os grupos de doentes com antecedentes de doença coronária (DAC) e insuficiência cardíaca congestiva (ICC). Foi criado um modelo de ajuste para inclusão de outras variáveis, consideradas possíveis fatores de confusão, tais como o tabagismo, a hipertensão e duração da diabetes.
O principal evento analisado foi a mortalidade por qualquer causa.

Resultados: Dos 17524 participantes, 2840 (16%) eram diabéticos e destes, 697 (25%) estavam medicados com β-bloqueantes.
Nos doentes diabéticos o hazard ratio (HR) ajustado para a mortalidade por qualquer causa foi 1.49 comparando os doentes medicados com β-bloqueantes com os não medicados. Por outro lado, nos doentes não-diabéticos não houve diferença significativa entre os dois grupos.
A mortalidade por qualquer causa nos doentes diabéticos com DAC foi significativamente maior naqueles medicados com β-bloqueantes, quando comparada com os não medicados (HR ajustado 1.64). Em contrapartida, nos doentes não diabéticos com DAC a mortalidade foi significativamente menor nos medicados com β-bloqueantes (HR ajustado 0.68). Para os doentes com antecedentes de Enfarte Agudo do Miocárdio e ICC, o padrão encontrado foi semelhante (mortalidade inferior nos não diabéticos e mortalidade superior nos diabéticos medicados com β-bloqueantes).

Discussão: Os resultados reforçam as conclusões de estudos prévios, indicando que em doentes não diabéticos com antecedentes de DAC e de ICC o uso de β-bloqueantes diminui a mortalidade por qualquer causa. No entanto, não existe evidência suficiente que comprove uma melhoria da sobrevida nos doentes com DAC sem história de EAM e ICC com fração de ejeção conservada. Este estudo demonstrou que em doentes diabéticos medicados com β-bloqueantes existe um padrão inverso de mortalidade, sendo que esta foi significativamente maior em doentes medicados com β-bloqueantes.

Limitações: Os dados deste estudo foram recolhidos entre 1999 e 2010, o que pode significar que os resultados não sejam aplicáveis às terapêuticas antidiabéticas atuais. Os diagnósticos de DAC e ICC foram obtidos através de informação transmitida oralmente pelos doentes, comprometendo a fiabilidade dos dados. A adesão à terapêutica ao longo do estudo não pôde ser confirmada. O período de follow-up não coincidiu com o início da toma de β-bloqueantes e foi mais longo no grupo de diabéticos não medicados. Este foi um estudo observacional prospetivo, sendo necessário a confirmação dos resultados através de um ensaio clínico randomizado.

Análise: O controlo de fatores de risco cardiovascular em doentes diabéticos influencia muito o seu prognóstico, sendo frequente depararmo-nos em consulta com decisões complexas relativas à medicação que devem cumprir. Os β-bloqueantes têm eficácia comprovada em doentes com antecedentes de EAM e ICC com disfunção sistólica, aumentando a sua sobrevida, mas questiona-se o seu real benefício em doentes diabéticos devido aos efeitos secundários potencialmente indesejáveis nesta população.
Este estudo, apesar das várias limitações encontradas na metodologia, alerta-nos para a possibilidade de aumento da mortalidade em doentes diabéticos medicados com estes fármacos. No entanto, são necessários mais estudos que comparem os outcomes de doentes que utilizem as novas classes de antidiabéticos orais, e que se aproximem mais da prática clínica da atualidade.

Por Ana Rita Domingues, Inês Castilho, Mafalda Bento (USF AlphaMouro)

quinta-feira, 8 de março de 2018

Auscultação em pé: Um método básico e de confiança para despiste do sopro cardíaco patológico em crianças

Título: Auscultation While Standing: A Basic and Reliable Method to Rule Out a Pathologic Heart Murmur in Children (link)

Introdução: O sopro cardíaco é um achado clínico afetando cerca de 65% a 80% crianças em idade escolar. A maioria dos sopros são fisiológicos mas a distinção entre normal e patológico nem sempre é fácil, levando a referenciações a Cardiologia desnecessárias, aumentado a ansiedade parental, consumo de tempo e de investigações.

Objetivo: Verificar o desaparecimento do sopro cardíaco em auscultação de crianças de dois ou mais anos em pé para excluir um sopro patológico.

Metodologia: Estudo prospetivo entre Janeiro de 2014 e Janeiro 2015 com uma amostra de 194 crianças entre 2 e 18 anos referenciadas a 6 cardiologistas pediátricos em dois hospitais franceses para avaliar o sopro cardíaco. Excluíram-se crianças com perturbações genéticas ou sistémicas, história familiar de doença cardíaca, que não conseguiam ficar de pé pelo menos 1 minuto e que já teriam sido vistas por cardiologia ou feito um ecocardiograma. Colheu-se a história pessoal da criança, sintomas cardiopulmonares e características da auscultação cardíaca primeiro em posição supina e depois de pelo menos 1 minuto em ortostatismo. Fez-se a todos um ecocardiograma para avaliar a presença ou ausência de alterações que pudessem explicar o sopro. As regurgitações valvulares e o foramen ovale patente foram considerados fisiológicos. Os dados descritivos foram apresentados como médias ± desvios padrão e os dados de desempenho diagnóstico foram apresentados como valores com intervalos de confiança de 95%. O significado estatístico foi definido como P<0,05.

Resultados: Das 194 crianças referenciadas por sopro, 30 (15%) apresentaram uma alteração cardíaca demonstrada por ecocardiograma. A presença de sopro patológico foi associada à persistência do mesmo em ortostatismo, à ausência da diminuição da sua intensidade, à localização no bordo para-esternal esquerdo ou no ápex e à presença de irradiação. Em 100 (52%) das 194 crianças, o sopro deixou de ser audível na passagem a ortostatismo. Dentro deste grupo apenas 2 apresentavam um ecocardiograma alterado. Apesar de uma sensibilidade de 60% (IC 95%, 52%-67%), observou-se o desaparecimento do sopro cardíaco com a transição da posição supina para ortostatismo, predizendo ausência de doença cardíaca com um valor preditivo positivo (VPP) de 98% (IC 95%, 93%-100) e uma especificidade de 93% (IC 95%, 78%-99%).

Discussão: O exame físico deve continuar a ser a primeira linha de diagnóstico. Neste estudo, 85% das crianças referenciadas a cardiologia não tinha doença cardíaca, demonstrando não haver um critério clinico que assegure os profissionais de saúde da ausência de patologia em crianças com sopro. Com um VPP de 98%, a ausência de doença cardíaca foi associada ao desaparecimento do sopro cardíaco com a transição da posição supina para ortostatismo. Os autores afirmam que a auscultação cardíaca em ortostatismo poderá reduzir em mais de 50% o número de referenciações a cardiologia, poupando recursos em saúde. Consideram este ser um teste clínico valioso para excluir patologia cardíaca e evitar referenciação a cardiologia. Como limitações ao estudo referem a subjetividade da auscultação e o facto de não ter sido avaliada a sua reprodutibilidade entre os médicos participantes, nem entre estes e os médicos de cuidados de saúde primários. Concluem serem necessários mais estudos para confirmar o valor desta ferramenta.

Análise:  A auscultação cardíaca é parte integrante do exame objectivo efectuado na consulta de vigilância da população pediátrica. Tal facto, coloca o “achado” sopro, como uma alteração possivelmente frequente neste contexto. Os Cuidados primários têm um papel importante na gestão dos recursos de saúde: quanto melhor soubermos o que fornecer e a quem, conscientes das limitações desses recursos, melhores seremos a geri-los de forma eficaz e equitativa.
Considerámos a temática e o resultado deste estudo - o desaparecimento do sopro cardíaco nas crianças auscultadas em pé se tratar de um teste especifico (especificidade de 93%) para excluir a doença cardíaca - como pertinente e como um ponto forte do estudo, uma vez que se adequa à realidade, às problemáticas e à população abrangida na prática dos cuidados primários. Outro ponto forte do estudo, consequente do primeiro, é que este estudo poderá contribuir para o aperfeiçoamento do papel “gestor de recursos” dos cuidados primários, ao evitar exames complementares de diagnóstico dispensáveis e referenciações aos cuidados secundários mais adequados.
No entanto, como limitações e os próprios autores também as referem, nota-se a existência de uma amostra pequena, a própria auscultação ser subjectiva e apenas cardiologistas pediátricos terem participado no estudo. Notamos ainda que por não se tratar de um estudo que abranja população portuguesa, ficamos sem saber se o contexto em estudo é representativo da nossa realidade, uma vez que não nos fornece a prevalência de patologia cardíaca da população pediátrica portuguesa, e assim um valor pré-teste ao teste em estudo. A conclusão do estudo é baseada no resultado de um alto valor preditivo positivo (98%) do teste em questão, no entanto este depende do seu valor pré-teste (variável entre populações).
Achamos que poderá ser assim comprometida a transposição para a medicina geral e familiar, uma vez que não houve avaliação entre os médicos de família e na população portuguesa.
Seria bom existirem estudos mais alargados, no âmbito dos cuidados de saúde primários portugueses para validarem o uso da auscultação cardíaca em pé como forma de exclusão do sopro patológico.

Por Ângela Pacheco, Irene Moura, Maria da Paz Brito (USF AlphaMouro)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Qual o alvo ideal para o tratamento da hipertensão? Polémica sobre o estudo SPRINT

Título: The SPRINT Research Group. A randomized trial of intensive versus standard blood-pressure control

Introdução: Os alvos de tensão arterial sistólica (TAS) no tratamento da hipertensão arterial (HTA) que conferem uma maior redução de morbimortalidade cardiovascular (CV) permanecem incertos.

Objectivo: Comparar o impacto do tratamento intensivo da HTA (alvo de TAS < 120 mmHg) com tratamento standard (<140 mmHg) na morbimortalidade cardiovascular de pessoas acima dos 50 anos, com risco cardiovascular aumentado mas sem diabetes.

Métodos: Trata-se de um estudo aleatorizado, controlado, open-label que decorreu em 102 clínicas nos EUA e Porto Rico. Incluíram-se pessoas que cumpriam os três seguintes parâmetros: 50 anos ou mais, TAS 130-180 mmHg, risco cardiovascular alto. Este último foi definido por um ou mais dos seguintes critérios: doença cardiovascular clínica ou subclínica, doença renal crónica (DRC) com taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) 20-60 ml/min/1,73m2, score de Framingham ≥ 15%, idade ≥ 75 anos. Foram excluídas pessoas com: diabetes, acidente vascular cerebral (AVC) prévio, doença renal poliquística.
A aleatorização foi estratificada de acordo com o local, estando os participantes e os intervenientes informados dos grupos atribuídos.
O outcome primário era composto por enfarte agudo do miocárdio, outros síndromes coronários, AVC, insuficiência cardíaca ou morte de causa cardiovascular. Os outcomes secundários, incluiam também a mortalidade global. Foram considerados também outcomes de segurança, nomeadamente eventos adversos e outcomes renais. A classificação dos eventos foi realizada por um comité de adjudicação que estava ocultado do grupo dos participantes. Foi realizada análise estatística por intenção de tratar de todos os outcomes.

Resultados: Foram recrutados 9361 participantes, que foram aleatorizados para tratamento intensivo ou standard. Não havia diferenças estatisticamente significativas nas características basais dos dois grupos. Ao fim de um ano, o grupo intensivo tinha uma TAS média de 121,4 mmHg e o grupo standard 136,2 mmHg. A diferença de TAS entre os dois grupos foi em média 13,1 mmHg, sendo que o grupo intensivo tinha 2,8 fármacos e o grupo standard 1,8.
Após cerca de 3,26 anos de seguimento, o estudo foi interrompido por se verificar uma taxa inferior do outcome primário no grupo de tratamento intensivo (hazard ratio, 0,75; intervalo de confiança [IC] 95% - 0,64 a 0,89; redução de risco relativo [RRR] de 25%; número necessário de tratar [NNT] de 61). A mortalidade global também foi significativamente mais baixa no grupo do tratamento intensivo (hazard ratio, 0,73; IC 95% - 0,60 a 0,90, RRR de 27%; NNT de 90).
As taxas de eventos adversos de hipotensão, síncope, alterações hidroelectrolíticas e lesão renal aguda foram mais elevadas no grupo intensivo, com excepção da taxa de quedas.

Conclusões: Entre doentes com risco CV aumentado mas sem diabetes, um alvo de TAS < 120 mmHg, comparado com um alvo de TAS < 140 mmHg, resultou em menores taxas de eventos CV fatais e não fatais e morte por qualquer causa. Contudo, as taxas de alguns eventos adversos foram significativamente superiores no grupo do tratamento intensivo.

Análise: De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a HTA é o fator de risco mais importante para morte prematura1. Em Portugal, a sua prevalência é de 26.9% (dados de 2013)2. No entanto, os alvos para controlo da TA não são consensuais. Uma revisão sistemática da Cochrane de 20093 que analisou 7 ensaios clínicos incluindo 22089 participantes não encontrou evidência que uma redução do alvo da TA para valores ≤ 135/85 mmHg diminuísse a morbimortalidade. A norma de orientação de HTA do National Institute for Health and Care Excellence (NICE)4 de 2011, baseada em 8 ensaios clínicos aleatorizados, recomenda um alvo tensional de 140/80 mmHg para indivíduos com menos de 80 anos, mas realça que a evidência que avalia especificamente o alvo ideal de tratamento é insuficiente e não permite certezas quanto ao mesmo. Em relação aos doentes com Diabetes Mellitus, o estudo ACCORD5 mostrou que um alvo de TAS < 120 mmHg não se traduziu em benefício cardiovascular.

O estudo SPRINT vem desafiar a evidência prévia e levantar questões pertinentes sobre o alvo terapêutico ideal da HTA. O resultado principal foi a diminuição de eventos cardiovasculares fatais e não-fatais, apresentado sob a forma de uma RRR de 25%. Contudo, olhando para a redução do risco absoluto de mortalidade global, que traduz de forma mais realista os ganhos em saúde, verificamos que em relação ao outcome primário a redução foi de 0,54% e que a taxa de mortalidade global diminuiu apenas cerca de 0,37% por ano. Isto significa que para salvar uma vida a cada 3 anos precisaríamos de tratar intensivamente 90 pessoas (NNT 90).

Dos restantes outcomes, importa assinalar que se verificaram mais casos de lesão renal aguda reversível no grupo intensivo, bem como maior redução da TGFe nos doentes sem DRC prévia. No entanto, os outcomes renais não puderam ser avaliados adequadamente, uma vez que seriam calculados apenas no final do follow-up planeado de 5 anos.

Em relação aos efeitos adversos, a síncope e hipotensão foram significativamente mais frequentes no grupo intensivo (3,5% vs. 2,4%, e 3,4% vs. 2,0%, respetivamente), mas a taxa de quedas com lesões subsequentes manteve-se semelhante nos dois grupos.

Relativamente aos pontos fortes do estudo, a amostra de grandes dimensões, com boa representação de grupos frequentemente sub-representados em ensaios clínicos, como mulheres, idosos e minorias étnicas. A análise por intenção de tratar garante uma perspectiva mais real dos outcomes, pois analisa os doentes no grupo em que foram inicialmente alocados (independentemente do seu cumprimento terapêutico). Apesar da natureza open-label do estudo, a equipa de estatística e o comité de adjudicação de outcomes estavam cegos para a alocação.

Um dos aspectos a salientar é o da população incluída no estudo não corresponder à maioria dos doentes que observamos nos cuidados de saúde primários (CSP) - a amostra incluía apenas doentes com 50 anos ou mais, com alto risco CV, com ou sem doença arterial coronária prévia, tendo sido excluídos doentes com diabetes, AVC prévio, idosos institucionalizados e doentes com antecedentes de má adesão terapêutica.

O valor médio da PAS nos dois grupos foi 139,7 mmHg, pois foram incluídos doentes pré-hipertensos e excluídos hipertensos polimedicados com mau controlo tensional. Além disso, os valores de TA foram medidos em contexto de consulta, o que pode condicionar uma avaliação menos fidedigna da TA em comparação com os valores no domicílio6.

Uma das principais limitações do estudo é o formato open-label (os médicos e os doentes sabiam da sua alocação). Isto pode influenciar a intensidade da abordagem terapêutica (não exclusivamente farmacológica) por parte dos médicos, condicionando um potencial viés. Aliás, o grupo intensivo teve um protocolo de seguimento mais apertado: bastava uma medição da TA elevada para agendar uma reavaliação em 1 mês, em vez dos 3 meses programados; enquanto que no grupo de controlo, só após 2 medições elevadas em consultas diferentes é que era programada uma reavaliação mensal7. Verificamos ainda que mais de metade das mortes “em excesso” no grupo controlo foram devidas a causas não-cardiovasculares8, sugerindo um efeito protector que vai além da redução da TA - será que se relaciona com esta vigilância mais frequente do grupo de tratamento intensivo?

Em conclusão ao comentário, este estudo não se aplica à maioria dos doentes do nosso contexto de CSP, e não deve levar à mudança do alvo tensional em todos os hipertensos. Foram incluídos apenas doentes com alto risco cardiovascular e sem diabetes ou AVC prévio, sendo que nos restantes não há qualquer evidência para alterar o tratamento. Além disso, mesmo nesta população seleccionada, o benefício do controlo intensivo da TA na mortalidade parece reduzido e não existe evidência que ultrapasse os potenciais riscos e custos do tratamento. A decisão deve ser, em última instância, partilhada entre médico e doente, uma vez explicada a evidência disponível, sem esquecer o impacto dos estílos de vida saudáveis no controlo da HTA.

Por Ana Rita Domingues, Ângela Pacheco, Paulo Faria de Sousa (USF AlphaMouro) e Catarina Viegas Dias (USF Dafundo)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Terapêutica com estatinas e risco de perda de memória aguda

Título: Statin Therapy and Risk of Acute Memory Impairment

Introdução: Existem relatos e séries de casos de perda de memória aguda associada ao início de toma de estatinas, mas estes achados são inconsistentes e os estudos de longo prazo realizados demonstraram melhoria da memória ou ausência de efeito.

Objectivo: Verificar se os utilizadores de estatinas demonstram perda de memória aguda reversível, quando comparado com não utilizadores e com utilizadores de fármacos “hipolipemiantes não-estatinas” (HNE).

Métodos:
Foram realizadas 3 análises para responder à pergunta de investigação:
Coorte retrospectiva
     ○ Consulta de base de dados de Cuidados de Saúde Primários (CSP): THIN - 26 anos de registos dos Médicos de Família no Reino Unido;
     ○ Amostra:
          ▪ Intervenção:
               - 482543 utilizadores de estatinas.
          ▪ Controlo:
               - 482543 não utilizadores de estatinas emparelhados (idade, sexo, tempo de seguimento);
               - 26484 utilizadores de HNE.
Case-crossover
     - 68028 utentes com perda de memória aguda “incidental”;
     - Avaliar exposição a estatinas nos períodos que antecederam o episodio (0 a 30 dias, 31 a 60 dias, 150 a 180 dias e 270 a 300 dias que antecederam o episódio).
Transversal - Validade dos diagnósticos
     - 100 doentes aleatórios com diagnóstico de perda de memória aguda
     - Enviado questionário para os médicos assistentes para validar diagnóstico electrónico

Resultados: As amostras de doentes obtidas não variaram significativamente para os factores predefinidos para emparelhamento - idade, sexo e anos de seguimento. No entanto, a prevalência de patologia e de medicação utilizada na população exposta a estatinas era superior em tudo o resto, por exemplo: prevalências de diabetes, AVC, tabagismo, défice de vitamina B12, entre outros.
Quando comparados com os não utilizadores, uma forte associação estava presente entre a primeira exposição às estatinas e a perda de memória aguda “incidental”, nos primeiros 30 dias após início da exposição (OR ajustado, 4,40; 3,01-6,41). Esta associação não foi reproduzida na comparação entre as estatinas e os HNE (OR ajustado, 3,60; 1,34-9,70), apesar de também se verificar na comparação de HNE com não utilizadores. A análise case-crossover mostrou uma fraca associação.
Relativamente ao questionário enviado, dos respondentes, 88,4% confirmaram o diagnóstico sendo que destes apenas 38,2% confirmaram a sua resolução, demonstrando que muitos dos casos não foram reversíveis.

Conclusões: Tanto as estatinas como os HNE estiveram fortemente associados a perda de memória aguda nos primeiros 30 dias após a exposição em utilizadores, quando comparado com não utilizadores, mas não quando comparados entre si. Portanto, ou todos os fármacos hipolipemiantes causam perda de memória aguda independentemente da classe ou a associação é o resultado de um viés de detecção e não de uma associação causal.

Análise: Este estudo apresenta vários pontos fortes: população semelhante à da prática em CSP, amostra muito grande seguida durante um período prolongado, consulta de registos informáticos, realização de várias análises diferentes para diminuir as fontes de viés. Por outro lado, existe uma importante limitação metodológica neste estudo: diferenças dos dois braços do estudo quando feita a caracterização, o que pode ter afectado o outcome estudado. Pode ter existido um viés de selecção por menor consumo de consultas médicas por parte dos não utilizadores de estatinas o que poderia levar a uma menor detecção de perda de memória aguda. O case-crossover* realizado mostrou uma relação fraca, não corroborando a hipótese em estudo. Também a classificação feita pelos médicos é menos que perfeita, algo que também põe em dúvida os resultados. Mas mesmo assumindo que os casos foram mal classificados na mesma proporção em ambos os grupos (estatinas vs. não utilizadores), o risco desta patologia parece muito reduzido: 3,03% nas estatinas vs 2,31% nos seus controlos. Quando calculamos o NNH para este valor chegamos à conclusão que teremos de medicar 139 doentes para provocar um evento (NNH 1667, se considerarmos apenas os primeiros 30 dias após o início da estatina). Além de que houve um aumento do risco de perda de memória aguda com todos os fármacos hipolipemiantes, demonstrando a possibilidade de um viés de detecção, por consultas mais frequentes.

É importante que os possíveis danos das terapêuticas que utilizamos, principalmente as utilizadas em prevenção, sejam estudados e quantificados. Por muitos riscos que possam ser apontados às estatinas, este estudo parece ser robusto o suficiente para concluir a questão relativamente à perda de memória aguda. Caso exista um aumento de risco, será pequeno pelo que esta questão não nos deverá preocupar no momento da prescrição.

* O tipo de estudo case-crossover pretende comparar exposições em populações com diferenças importantes quando não é possível ou ético aleatorizar doentes para a exposição em questão. Neste sentido, o controlo de cada doente é o passado de ele próprio. Ou seja, avalia-se a relação temporal entre a exposição e o outcome. Se esta for muito forte (todas as exposições são sucedidas por um evento) conseguimos perceber que existe relação independente das características da população. Se por outro lado esta for muito fraca (muitos eventos não são precedidos de exposições) a probabilidade de existir uma relação causal é menor.


Por Paulo Sousa e Mário Cruz, USF Alpha Mouro


Artigo original em:
doi=10.1001/jamainternmed.2015.2092

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Crescimento da cabeça e resultados neurocognitivos

Título: Crescimento da cabeça e resultados neurocognitivos

Objetivo: Descrever a incidência de mudanças de percentil de perímetro cefálico (PC) e a relação entre extremos da dimensão da cabeça e alterações no neurodesenvolvimento. Encontrar evidência da utilidade da medição do PC como teste de rastreio.

Desenho do estudo: Estudo coorte, prospetivo e de base populacional.
A informação foi obtida do Estudo Longitudinal de Pais e Crianças de Avon (Reino Unido) que investigou a saúde e o desenvolvimento de 15247 crianças cuja gestação ocorreu entre 1991 e 1992. Em 10851 crianças, o PC foi medido e registado pelo menos em 2 avaliações diferentes até aos 24 meses. Aos 8 anos de idade mediu-se o QI através da Escala de Inteligência de Wechsler para crianças.Foram analisados os processos médicos das crianças com necessidade de apoio escolar e destes consideraram-se casos de alteração no neurodesenvolvimento os diagnosticados com dificuldade de aprendizagem, défices específicos no discurso ou função motora, autismo, epilepsia, doenças hipercinéticas e de conduta.
A análise estatística foi realizada com recurso ao IBM SPSS Statistics para calcular a média do PC, a distribuição normal do PC para cada idade (2, 9, 18 e 24 meses) e para definir os valores a partir dos quais se considera micro ou macrocefalia (entre os 2 e os 9 meses e entre os 18 e os 24).

Resultados:
1) Os dados obtidos demonstraram que cerca de 3%das crianças tiverammedições de PC compatíveis com percentis acima ou abaixo dos intervalos considerados normais, mas cerca de 75% apresentou-o apenas numa das medições.
2) Verificou-se que a mudança de percentilfoi frequente,com cerca de 20% das crianças a cruzar 1 percentil acima ou abaixo entre as 6-8semanas e os 9 meses, e 15% a cruzar entre os 9 e os 18-24meses. No entanto 75% das crianças, cuja transição de percentil se registou entre o 2º e o 9º mês, recuperoupara os seus valores habituais até aos 24 meses de idade; dos que não recuperaram, apenas 0.5% manteve valores extremos (acima do P98 ou abaixo do P2). Não se verificou relação entre cruzamentos de percentil e alterações neurológicas ou QI baixo.
3) O diagnóstico de distúrbios neurocognitivos (DNC) foi considerado raro ocorrendo apenas em 4,5% da amostra.Nas crianças com valores extremos de PC observou-se um aumento do riscode perturbação do desenvolvimento, necessidades educativas especiais aos 11 anos e QI baixo,no entanto sem significância estatística. No total das crianças com macrocefalia e microcefalia apenas houve diagnóstico de DNC em 15% e 9%,respectivamente.
4) Das crianças com diagnóstico de DNC 93% possuíam valores de PC correspondentes a percentis normais.

Conclusões: Os cruzamentos de percentil de PC são comuns e na sua maioria transitórios, o que se justifica por erros na medição e não se associa a DNC.
A existência de valores de PC fora dos parâmetros considerados normais não é um bom factor preditivo de problemas do desenvolvimento.
Os autores sugerem que a medição não deve ser feita em todos os exames de saúde, evitando desta forma a variabilidade incontornável das medições, e propõema medição do PC em 2 momentos: entre os 2 e os 5 dias após o nascimento e aos 6 meses de vida.

Comentário: Se por um lado se trata de um parâmetro amplamente utilizado nas consultas de saúde infantil, por outro lado, dada a sua baixa sensibilidade e especificidade para DNC, pode conduzir a investigações extensas, com realização de exames desnecessários e elevada ansiedade para os pais.
Sendo este um estudo com uma amostra considerável e representativa da população infantil, apesar de metodologicamente ser muito difícil conseguir manter o rigor na medição de todos os PC, faz-nos refletir acerca da relevância da medição de um dos parâmetros mais frequentemente avaliado ao longo dos primeiros dois anos de vida.

Por Sara Magalhães e Érica Rocha, USF Alpha Mouro

Artigo original em:
doi: 10.1542/peds.2014-3172

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Hemorragia gastrointestinal e anticoagulação oral

Título: Risco de hemorragia gastrointestinal associada a anticoagulação oral.

Objetivo: Determinar a segurança do dabigatrano e rivaroxabano em relação à varfarina no que diz respeito ao risco de hemorragia gastrointestinal.

Desenho do estudo: Estudo coorte, retrospetivo e de base populacional.
Foi colhida informação de uma base de dados de saúde nacional (EUA), que contém dados demográficos e clínicos, nomeadamente informação sobre diagnósticos (ICDC-9) e prescrição. Foram incluídos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, com ficheiro clínico atualizado nos 6 meses prévios a 1 de Outubro de 2010, com a primeira prescrição de varfarina, dabigatrano ou rivaroxabano datada entre 1 de Outubro de 2010 e 31 de Março de 2012 e sem história de evento hemorrágico prévio. Definiram-se como variáveis de controlo os dados demográficos, três condições clínicas (diagnóstico de traumatismo, insuficiência renal e infeção por H. Pylori), três prescrições (anti-inflamatórios não esteroides, inibidores da bomba de protões e esteróides) e nível de comorbilidades.
Estatisticamente foi utilizado o PMS (Propensity Score Matching) de forma a controlar as diferentes características associadas aos doentes expostos aos três fármacos. Após análise estatística considerou-se o género, comorbilidades e uso de anti-inflamatórios não esteróides como fatores de estratificação de risco. O cálculo de risco relativo foi avaliado através de modelos de risco proporcional de Cox e a nivelação de resultados através do PMS.

Resultados: Foram incluídos 46163 doentes distribuídos de acordo com o anticoagulante oral utilizado: 85,8% utilizadores de varfarina, 10,6% de dabigatrano e 3,6% de rivaroxabano. Em números absolutos a incidência de hemorragias gastrointestinais foi superior nos utilizadores de dabigatrano e menor nos utilizadores de rivaroxabano (dabigatrano vs. rivaroxabano vs. varfarina: 9,01 v 3,41 v 7,02 por 100 “person years” – medida utilizada, uma vez que existiu variação no tempo de exposição ao fármaco).
Considerando o dabigatrano e a varfarina, após ajuste das co-variáveis, não existiu diferença estatisticamente significativa de risco de hemorragia gastrointestinal entre os dois fármacos (risco relativo 1,20; 95% Intervalo de confiança 0,96 a 1,52). A comparação entre rivaroxabano e varfarina também não estabeleceu diferenças estatisticamente significativas (risco relativo de 0,95; 95% Intervalo de confiança 0,96 a 1,53).
A comparação entre o dabigatrano e a varfarina em indivíduos com menos de 65 anos apresentou um risco relativo de 1,33 com um P menor que 0,1, o que poderá indicar que existe um risco acrescido de hemorragia gastrointestinal nesta faixa etária.

Comentário: Este estudo veio contrariar estudos anteriores que descrevem associação entre o dabigatrano e um risco acrescido de hemorragia gastrointestinal, considerando não existirem diferenças estatisticamente significativas na população em estudo.
No entanto existem alguns pontos a ter em conta: a população considerada é mais jovem do que em estudos anteriores, com apenas 23,3% de indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos; a dose de dabigatrano considerada foi de 150 mg, superior à utilizada nos países europeus onde a dose aprovada para uso é de 110 mg, o que limita a comparação de resultados; os intervalos de confiança apresentados são amplos e não permitem descartar que os novos anticoagulantes orais não se associem com um risco acrescido de hemorragia gastrointestinal.
Acresce que a colheita através de uma base de dados não tem em conta, entre outros, o abandono terapêutico, a associação de terapêutica não registada, a mortalidade e o registo de testes laboratoriais.
Dadas as limitações dos estudos observacionais serão necessários mais estudos, nomeadamente ensaios clínicos, de forma a ser possível conhecer o perfil de eficácia e segurança destes fármacos. Esta informação é fundamental para ajudar os clínicos a selecionar o anticoagulante mais adequado, baseado no perfil do fármaco mas também na preferência dos utentes.

Por Maria Ana Sobral e Raquel Pedro, USF AlphaMouro

Artigo original em:
BMJ 2015;350:h1585

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Descontinuar estatinas em doentes terminais?

Título: Segurança e benefício da descontinuação de terapêutica com estatinas em contexto de doença avançada com esperança de vida limitada

Desenho do estudo: Ensaio clínico pragmático, multicêntrico, aleatorizado, com grupo de controlo e sem ocultação. Foram incluídos adultos (> 18 anos), com esperança média de vida entre 1 mês a 1 ano, a fazer terapêutica com estatina durante, pelo menos, 3 meses para prevenção primária ou secundária de doença cardiovascular, deterioração recente do status funcional e sem doença cardiovascular activa recente. Os pacientes foram distribuídos aleatoriamente para descontinuar ou continuar o tratamento com estatinas e foram monitorizados mensalmente durante 1 ano. O estudo foi conduzido entre 3 de Junho de 2011 e 2 de Maio de 2013. Todas as análises foram realizadas com “intenção-de-tratar” e testada a hipótese de não inferioridade. Os outcomesanalisados incluíram morte em 60 dias (outcome primário), sobrevivência, eventos cardiovasculares, performance status, qualidade de vida percepcionada (QDV), sintomas, número de medicamentos (excepto estatinas), efeitos adversos decorrentes da terapêutica com estatinas, satisfação com o serviço de saúde e poupança de custos.

Resultados: Foram avaliados 381 pacientes, 189 dos quais suspenderam estatinas e 192 continuaram a terapêutica. A média de idades foi de 74.1 anos (11.6), 22.0% dos pacientes estavam cognitivamente debilitados e 48.8% tinham cancro. A proporção dos participantes que faleceu no período de 60 dias nos dois grupos de estudo (grupo que descontinuou vs grupo que continuou terapêutica) não foi significativamente diferente (23.8% vs 20.3%; 90% IC, -3.5% a 10.5%; P= 0.36) mas a não inferioridade não foi verificada. A QDV total foi melhor no grupo que descontinuou a terapêutica com estatinas (score= 7,11 vs 6,85; P= 0.04). Alguns participantes sofreram eventos cardiovasculares (13 no grupo que descontinuou terapêutica vs 11 no grupo que continuou a terapêutica). O número total de medicamentos (excepto estatinas) foi significativamente mais baixo no grupo que descontinuou (10.1 vs 10.8 medicamentos; P= 0.03) A poupança média, por participante, foi de $3,37 por dia e $716 durante o período do estudo (follow-up médio de 212,6 dias). Todos os restantes outcomes não revelaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos.

Conclusão: Este estudo sugere que a suspensão da terapêutica com estatinas, nesta população específica, é segura e pode estar associada a um aumento da qualidade de vida, diminuição da lista de medicação habitual para além das estatinas e uma correspondente redução modesta nos custos associados à terapêutica.

Comentário: Nos doentes com prognóstico reservado, os benefícios esperados com o uso de estatinas devem ser avaliados e ponderados, principalmente quando estes requerem mais do que 1 ano a ser atingidos. A simplificação do regime terapêutico em fim de vida pode ter importância na saúde total do doente e cuidadores, devendo essa decisão ser centrada no paciente, partilhada e informada. O presente estudo tem a seu favor o facto de ser pragmático, conseguindo assim obter uma amostra representativa da população em estudo, bem como resultados da prática clínica real. No entanto, não foi possível verificar a não inferioridade da suspensão de estatina em relação à sua manutenção, o que pode constituir uma dificuldade na decisão clínica. Por outro lado, há que sublinhar a inexistência de diferenças significativas na mortalidade em ambos os grupos estudados. Outra limitação identificada prende-se com o método de inclusão dos participantes, feito por consentimento informado. Neste sentido, a disponibilidade para participação pode implicar uma predisposição à paragem da estatina, o que também pode enviesar resultados. Mais estudos são necessários para avaliar a segurança e/ou benefício de outros fármacos nesta população específica.

Por Daniela Runa e Ana Rita Domingues, USF AlphaMouro

Artigo original em: