sexta-feira, 24 de julho de 2015

Terapêutica com estatinas e risco de perda de memória aguda

Título: Statin Therapy and Risk of Acute Memory Impairment

Introdução: Existem relatos e séries de casos de perda de memória aguda associada ao início de toma de estatinas, mas estes achados são inconsistentes e os estudos de longo prazo realizados demonstraram melhoria da memória ou ausência de efeito.

Objectivo: Verificar se os utilizadores de estatinas demonstram perda de memória aguda reversível, quando comparado com não utilizadores e com utilizadores de fármacos “hipolipemiantes não-estatinas” (HNE).

Métodos:
Foram realizadas 3 análises para responder à pergunta de investigação:
Coorte retrospectiva
     ○ Consulta de base de dados de Cuidados de Saúde Primários (CSP): THIN - 26 anos de registos dos Médicos de Família no Reino Unido;
     ○ Amostra:
          ▪ Intervenção:
               - 482543 utilizadores de estatinas.
          ▪ Controlo:
               - 482543 não utilizadores de estatinas emparelhados (idade, sexo, tempo de seguimento);
               - 26484 utilizadores de HNE.
Case-crossover
     - 68028 utentes com perda de memória aguda “incidental”;
     - Avaliar exposição a estatinas nos períodos que antecederam o episodio (0 a 30 dias, 31 a 60 dias, 150 a 180 dias e 270 a 300 dias que antecederam o episódio).
Transversal - Validade dos diagnósticos
     - 100 doentes aleatórios com diagnóstico de perda de memória aguda
     - Enviado questionário para os médicos assistentes para validar diagnóstico electrónico

Resultados: As amostras de doentes obtidas não variaram significativamente para os factores predefinidos para emparelhamento - idade, sexo e anos de seguimento. No entanto, a prevalência de patologia e de medicação utilizada na população exposta a estatinas era superior em tudo o resto, por exemplo: prevalências de diabetes, AVC, tabagismo, défice de vitamina B12, entre outros.
Quando comparados com os não utilizadores, uma forte associação estava presente entre a primeira exposição às estatinas e a perda de memória aguda “incidental”, nos primeiros 30 dias após início da exposição (OR ajustado, 4,40; 3,01-6,41). Esta associação não foi reproduzida na comparação entre as estatinas e os HNE (OR ajustado, 3,60; 1,34-9,70), apesar de também se verificar na comparação de HNE com não utilizadores. A análise case-crossover mostrou uma fraca associação.
Relativamente ao questionário enviado, dos respondentes, 88,4% confirmaram o diagnóstico sendo que destes apenas 38,2% confirmaram a sua resolução, demonstrando que muitos dos casos não foram reversíveis.

Conclusões: Tanto as estatinas como os HNE estiveram fortemente associados a perda de memória aguda nos primeiros 30 dias após a exposição em utilizadores, quando comparado com não utilizadores, mas não quando comparados entre si. Portanto, ou todos os fármacos hipolipemiantes causam perda de memória aguda independentemente da classe ou a associação é o resultado de um viés de detecção e não de uma associação causal.

Análise: Este estudo apresenta vários pontos fortes: população semelhante à da prática em CSP, amostra muito grande seguida durante um período prolongado, consulta de registos informáticos, realização de várias análises diferentes para diminuir as fontes de viés. Por outro lado, existe uma importante limitação metodológica neste estudo: diferenças dos dois braços do estudo quando feita a caracterização, o que pode ter afectado o outcome estudado. Pode ter existido um viés de selecção por menor consumo de consultas médicas por parte dos não utilizadores de estatinas o que poderia levar a uma menor detecção de perda de memória aguda. O case-crossover* realizado mostrou uma relação fraca, não corroborando a hipótese em estudo. Também a classificação feita pelos médicos é menos que perfeita, algo que também põe em dúvida os resultados. Mas mesmo assumindo que os casos foram mal classificados na mesma proporção em ambos os grupos (estatinas vs. não utilizadores), o risco desta patologia parece muito reduzido: 3,03% nas estatinas vs 2,31% nos seus controlos. Quando calculamos o NNH para este valor chegamos à conclusão que teremos de medicar 139 doentes para provocar um evento (NNH 1667, se considerarmos apenas os primeiros 30 dias após o início da estatina). Além de que houve um aumento do risco de perda de memória aguda com todos os fármacos hipolipemiantes, demonstrando a possibilidade de um viés de detecção, por consultas mais frequentes.

É importante que os possíveis danos das terapêuticas que utilizamos, principalmente as utilizadas em prevenção, sejam estudados e quantificados. Por muitos riscos que possam ser apontados às estatinas, este estudo parece ser robusto o suficiente para concluir a questão relativamente à perda de memória aguda. Caso exista um aumento de risco, será pequeno pelo que esta questão não nos deverá preocupar no momento da prescrição.

* O tipo de estudo case-crossover pretende comparar exposições em populações com diferenças importantes quando não é possível ou ético aleatorizar doentes para a exposição em questão. Neste sentido, o controlo de cada doente é o passado de ele próprio. Ou seja, avalia-se a relação temporal entre a exposição e o outcome. Se esta for muito forte (todas as exposições são sucedidas por um evento) conseguimos perceber que existe relação independente das características da população. Se por outro lado esta for muito fraca (muitos eventos não são precedidos de exposições) a probabilidade de existir uma relação causal é menor.


Por Paulo Sousa e Mário Cruz, USF Alpha Mouro


Artigo original em:
doi=10.1001/jamainternmed.2015.2092

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